Por Luciana Ramos
Após o lançamento da inovadora e criativa “WandaVision”, a Marvel Studios retorna ao molde clássico em “Falcão e o Soldado Invernal”, apostando na profusão de cenas de ação e conservadorismo narrativo. Ainda assim, consegue debruçar-se em questões contemporâneas, como imigração e supremacia, através do mergulho existencial sobre o papel dos heróis e importância dos símbolos.
A série trabalha ao longo de seis episódios inúmeras facetas do significado da figura do Capitão América, questionando o tempo todo a sua importância institucional: enquanto para Sam Wilson (Anthony Mackie) o manto não valia nada sem a pessoa que o vestiu, Steve Rogers, para o governo americano sentia-se a necessidade de rapidamente escolher um substituto que “elevasse a moral” da sociedade. Apesar da pontuação sobre a solidez da carreira de John Walker (Wyatt Russell), pouco (ou nada) se investigou sobre sua conduta ética. Seu perfil impulsivo e violento poderia ser adequado ao campo de batalha, mas inevitavelmente viria a colidir com a expectativa social do seu papel.
Sam, por outro lado, abnegou-se de assumir o posto por questionar o peso de sua escolha: o quanto ele, ao assumir um símbolo até então branco, poderia sofrer racismo e suscitar convulsões sociais? Tendo em vista a história do seu povo, tão facilmente apagada dos anais americanos, ele deveria se submeter a tal missão? Essa discussão é embasada por pontos importantes da trama, como a recusa do governo americano em sequer convidá-lo para o papel e a jornada sofrida de Isaiah Bradley (Carl Lumbly), usado como experimento por órgãos oficiais em prol de vantagem geopolítica – ponto crucial da discussão, já que reflete realisticamente a amarga história dos Estados Unidos. Costurando os dois pontos de discussão (o simbólico e o racial) tem-se a trama dos Apátridas, que se estabelecem como principal ponto de oposição aos heróis.
Em meio à luta para garantir o legado patrimonial da sua família, Sam é alertado pelo soldado Torres (Danny Ramirez) para o surgimento de uma nova facção que possui como objetivo o retorno da sociedade para o período do blip, marcado pelo desaparecimento de metade da população mundial. Assim, caracterizam-se como um grupo criminoso que usa o terror para forçar sua agenda política, cometendo roubos e assassinatos para tanto.
Na visão da sua líder, a jovem Karli Morgenthau (Erin Kellyman), suas ações refletem uma necessidade de reparação histórica visto que, durante cinco anos, pessoas pobres e/ou refugiadas foram acolhidas pelos Estados – lhes foi dado emprego, teto, esperança – somente para serem escorraçadas após o retorno dos “donos” dos imóveis e vagas comerciais. Por isso, os Apátridas sentem que seu senso de propósito foi roubado por instituições como o GRC (Conselho de Repatriamento Global), alvo principal de vingança.
As interações entre Karli e Sam estabelecem pontos de convergência entre suas experiências – pontuado, por exemplo, pela dificuldade dele e da sua irmã Sarah (Adepero Oduye) conseguirem um empréstimo do banco – mas que divergem no modo como lutam por mudança social. Se a Apátrida vê no comprometimento dele com o governo certa subserviência, Zemo (finalmente introduzido como Barão) a enxerga como supremacista, visto a nítida divisão social que promove ao tomar e distribuir os soros de super soldados para posteriormente incitar a violência.
Sua reflexão segue diretamente a linha de raciocínio estabelecida em “Capitão América: Guerra Civil” com espaços para aprofundamentos, que levam o espectador compreender melhor as motivações do (agora) anti-herói. Zemo (Daniel Brühl) marca o ápice da série tanto no seu teor argumentativo – que reflete, inclusive, com a responsabilização dos heróis sobre as tragédias que infligem a outros, ponto que ecoa na jornada de Bucky (Sebastian Stan) – quanto cômico, vide o talento de Brühl em extrair o melhor de cada cena.
Conforme citado, uma vez recuperado, o ex-Soldado Invernal se vê obrigado a lidar com as consequências de seus atos e, após confundir reiteradas vezes os conceitos de vingança e justiça, enfim compreende e aceita melhor o seu passado, o que o leva a perceber as nuances da jornada de Wilson. Neste sentido, a bela cena em que ele flagra os sobrinhos do amigo brincando com o escudo do Capitão América é sucinta, porém eficaz no concernente à representatividade e, ao mesmo tempo, ao peso que tal legado poderia representar para um homem negro, argumento reforçado didaticamente na fala do próprio Sam a um senador do GRC no episódio final.
Esta, por sua vez, demarca o novo Capitão como um interlocutor mais presente e com melhor consciência do potencial expansivo do seu papel: não só de batalhas, mas também de debates. Ainda que seja pertinente e embale o fim da sua jornada, o diálogo excessivamente expositivo também quebra uma das primeiras regras de roteiro (mostre, não diga) e expõe um problema também aparente na produção televisiva anterior da Marvel: a dificuldade de encerrar seus temas, vide a grande preocupação com estabelecer possíveis ganchos com materiais posteriores.
Da súbita mudança de comportamento de John Walker – que caminha da egolatria para a rápida aceitação de um papel secundário ao final – à revelação quase anticlimática da identidade do Mercador do Poder, “Falcão e o Soldado Invernal” demonstra não saber equilibrar tantas frentes argumentativas e acaba optando por conclusões apressadas, que suscitam indagações sobre o quão fluida a série poderia ser caso tivesse aberto espaço para mais episódios.
Diante de tais problemas, a série perde um pouco do seu potencial catártico – vide a grande revelação ao final – mas permanece como uma obra interessante, disposta a abordar as jornadas de seus personagens em terreno mais intimista e pautado por questões identitárias (para ambos), caracterizando um bom avanço narrativo no território da Marvel, que ainda precisa aprender a fechar melhor as suas séries.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Número de Episódios: 06 (por temporada)
Nacionalidade: EUA
Gênero: ação, super-herói, aventura, drama
Criador: Malcolm Spellman
Elenco: Anthony Mackie, Sebastian Stan, Daniel Brühl, Erin Kellyman, Wyatt Russell, Danny Ramirez, Adepero Oduye, Emily VanCamp