Por Luciana Ramos
É interessante observar um traço cultural em comum entre os subúrbios americanos e as classes abastadas brasileiras: a manutenção das aparências. Em tais ambientes sociais, por todo o tempo ostenta-se, compete-se, medem-se uns aos outros por réguas criadas e mantidas por gerações – seja a caridade como instrumento de confirmação de “bondade”, contraposta à indiferença às injustiças fora da bolha, seja a manutenção de um padrão de beleza ou na apresentação de uma casa bonita e limpinha.
Este jogo é, na grande maioria das vezes, velado; afinal de contas, estas pessoas não querem ser reconhecidas ou responsabilizadas por seus erros. Ao escrever o romance “Pequenos Incêndios a Toda Parte”, Celeste Ng escancara a hipocrisia a partir do encontro de duas mulheres muito diferentes, uma sob a pressão das conformidades sociais – e que obriga todos ao redor a fazerem o mesmo – e uma que decide viver segundo as próprias regras, mas não é tão livre quanto aparenta.
Ao avistar um Chevette antigo e meio sujo com duas mulheres negras dentro, a primeira reação de Elena Richardson (Reese Withersppon) é notificar o xerife, pois “se sentiria terrível se algo acontecesse”. Logo após, ao reconhecer o carro quando apresenta uma propriedade de família à Mia Warren (Kerry Washington) e sua filha Pearl (Lexi Underwood), ela oferece um desconto no aluguel já que, na sua mente, a “boa ação” a eximiria da culpa por ter agido de forma racista – e, doravante, de qualquer de mudança de conduta.
De fato, ela adora falar da luta da sua família pela inclusão de Shaker: nos Estados Unidos, algumas cidades e comunidades eram oficialmente segregadas e as famílias afro-americanas que almejaram morar em tais lugares após a derrocada dessas leis sofreram repressão, violência e perseguição dos próprios vizinhos. Shaker, segundo Elena, caminhou em oposição e agregou famílias de origens e etnias diversas, tornando-se um modelo de comunidade.
A falácia de tal narrativa desmonta-se a cada pequena contravenção ou ação que desafie o status quo: na forma de multas pela grama estar muito alta ou o desprezo de discutir sobre vaginas em um clube do livro, nas mulheres negras que veem pessoas brancas segurarem a bolsa ao vê-las, no sofrimento infindável de Izzy (Megan Stott) por ser nitidamente diferente dos colegas – rebelde, artística, desafiadora e gay.
As adequações sociais carregadas como bandeiras são postas à prova pelo incômodo gerado com a presença de Mia na cidade e a consequente obstinação de Elena em investigar o seu passado até encontrar algo que justifique seu sentimento. Na interação entre as duas, a mulher branca e rica conquista Pearl por oferecer uma fagulha do conforto e segurança que uma vida como a sua pode oferecer, o que causa à adolescente refletir sobre os segredos que sua mãe esconde.
A sua convivência da garota com Trip (Jordan Elsass), Moody (Gavin Lewis) e Lexie (Jade Pettyjohn) também escancara o privilégio branco em diferentes dimensões, já que o garoto mais novo, ao tentar conquistá-la, trata-a como se fosse sua posse (algo proferido pela própria irmã, Izzy) e a mais velha do clã, Lexie, sente-se mais do que à vontade para se apossar da história, do sofrimento e do nome de Pearl quando lhe é necessário para não “queimar seu filme” perante os colegas. Por outro lado, Izzy, que se sentia perdida e desolada, vê no talento artístico e na capacidade de enfrentamento de Mia a esperança de que as coisas possam melhorar para ela quando sua vida escolar – e o bullying – enfim terminarem.
Do ponto de vista racial, há ainda o debate sobre a criança May Ling e a disputa pela sua guarda entre uma mãe (Lu Huang) que a abandonou por pura necessidade e outra mulher (Rosemarie DeWitt), que a acolheu e amou, mas é incapaz de reconhecer a sua raça. Neste ponto, a escolha de colocar biscoitos da sorte (uma invenção americana) como aperitivo tipicamente chinês no aniversário da menina é bastante significativo.
Conforme os episódios da minissérie adaptada por Liz Tigelaar e produzida por Reese Witherspoon se desenrolam, escancaram-se os diferentes tipos de pressão impostas a todos os personagens e desafiam-se as noções de certo e errado conforme segredos e desavenças entre ação e fala vão se revelando. Não se trata, portanto, de uma obra maniqueísta – embora seja sutil o bastante para ser uma experiência leve e viciante – mas uma que convida para a observação e reflexão. Ademais, é a última obra de Lynn Shelton, diretora que fez seu nome na televisão (“LOVE”, “GLOW”, “Master of None”) e infelizmente faleceu recentemente mas pôde, em “Little Fires Everywhere” (onde também serviu como produtora executiva), exprimir o seu talento ao criar a concepção visual da minissérie, destacando a imponência em planos abertos, a emoção nos closes e a hipocrisia na sutileza dos planos de detalhes.
Ficha Técnica
Ano: 2020
Número de Episódios: 8
Nacionalidade: EUA
Gênero: drama
Criadora: Liz Tigelaar
Elenco: Kerry Washington, Reese Witherspoon, Lexi Underwood, Joshua Jackson, Rosemarie DeWitt, Jade Pettyjohn, Megan Stott