Por Luciana Ramos

 

Sob alcunhas de imperador, visionário ou sellout, Pierre Cardin construiu uma frutífera carreira ao longo de seus 98 anos, revolucionando no caminho não só a moda, mas o conceito da imagem. De origem italiana, fugiu com a família ainda pequeno para a França por causa da ascensão do fascismo.

Já com ambições de trabalhar com vestuário, produziu vestidos para bonecas na adolescência – um passo distante e desanimador – até conseguir, no pós-Guerra, um primeiro trabalho como alfaiate que o conduziria à Casa Dior. Sob a tutela do fundador, Christian, afinou suas habilidades técnicas e ajudou no lançamento do chamado new look que, com a sua silhueta demarcada e comedida, seria interpretado como uma revolução no mundo da moda…, mas Pierre em breve mostraria uma estética totalmente nova, impensada.

Em um momento do documentário dedicado à sua vida, um entrevistado sintetiza Cardin em uma palavra: “ele é moderno; ele não faz roupas modernas, ele é moderno”. A sua essência, portanto, estaria profundamente atrelada ao exercício da imaginação no sentido de expandir conceitos – de beleza, de usabilidade, de negócios, de marca – e pô-los em prática em um processo incansável de inovação.

Primeiramente, devotou-se à confecção de um look autoral que diferisse de tudo o que estava em voga na época. Enxergando a liberdade dos anos 60 como princípio, libertou a silhueta; observando os anseios da corrida espacial, trabalhou com geometrias e tentou produzir roupas futuristas. Soube captar também a importância da imagem na adesão que a sociedade teria da sua ideia de vestimenta e, por isso, trabalhou as fotografias como espetáculos imagéticos que representavam algo novo, desejado.

Seu trabalho é de fato impressionante – é só observar o modo como sua estética definiu os filmes dos anos 60. O poder de difusão do seu conceito foi além, pois os próprios Beatles declararam que tiraram a ideia dos ternos desconstruídos do seu trabalho. Este já seria denominado como impressionante neste ponto, mas o estilista era uma locomotiva de inovações, conforme demonstrado em detalhes no longa “O Império de Pierre Cardin”: ele passou a produzir móveis ovalados e sinuosos que desafiavam as noções de beleza da época; toalhas, carros e até óculos de grau, sendo o primeiro a entender a importância de tirar esse acessório da mesmice.

Não obstante, lançou uma coleção na Printemps, loja de departamento francesa, com o objetivo de democratizar a moda: “tentarei ofertar o máximo a todos”, disse em entrevista de arquivo inserida na produção. Por isso, despertou a ira das demais casas de alta-costura parisienses, que o puniram com a expulsão do seu sindicato. Suas cunhadas “transgressões” também não se contiveram à oferta, explorando novas culturas.

Interessado pela contínua expansão do seu negócio, Pierre foi o primeiro a realizar um desfile na Muralha da China, onde aproveitou para estudar tecidos e firmar parcerias. De lá, levou Hiroko Matsumoto para a França, onde se tornou o rosto da marca. Foi a primeira modelo não europeia a atuar em uma grande casa de haute couture. Também empregou mulheres negras e fora dos padrões estéticos de magreza vigentes (à la Twiggy), aproximando o conceito de beleza de uma grande marca à representação da diversidade social, um grande e belíssimo passo no seu trabalho.

A sua inquietude reflete-se no modo como aparece, já bastante idoso, no documentário: ávido em mostrar suas criações, em contar pequenas anedotas e explicar seu processo de trabalho. Na sua mente, andavam sempre juntos os conceitos de inovação e expansão, unidos em um império de mais de 800 produtos licenciados com sua marca. Esta, por sinal, foi adequando-se à cada lançamento, simplificada em objetos simples, como garrafas de água, e extensas em produtos de luxo (seu nome completo como adorno), um ponto apenas citado na obra, mas que permite uma boa reflexão sobre sua visão vanguardista acerca da importância de uma identidade visual bem firmada, bem como suas possibilidades de renovação.

Em meio a toda a produção, restava o espaço para sua paixão pela arte, pela apresentação pela criação de imagens e sons que marcassem profundamente seus consumidores. Assim, fundou dois teatros – um em Paris e um no antigo castelo do Marquês de Sade – onde se apresentaram Marlene Dietrich, Dionne Warwick, Gerard Depardieu (lançado como ator em uma peça do Palace Cardin) e a banda Alice Cooper, que não agradou seus ouvidos, mas atraiu sua atenção pela performance do cantor com uma cobra.

Ao longo de duas horas condensadas de inovações, “O Império de Pierre Cardin” consegue ir muito além dos tradicionais documentários de moda (embora opte pelo seu formato conservador) e define seu objeto de estudo como um grande pensador, um homem de infinita imaginação que testou os seus limites para produzir bens de consumo que fossem interessantes e, em gradações diferentes, acessíveis, sempre com um profundo conhecimento do poder de sua marca. Cardin nos deixou em dezembro de 2020 aos 98 anos, mas a beleza dos seus conceitos perdurará por muitas décadas pois, embora sua estética seja muito conectada à década de 60, a sua visão artística continua a inspirar profissionais de todas as áreas, muito além da moda.

Ficha Técnica

Ano: 2021

Duração: 95 min

Gênero: documentário

Direção: P. David Ebersole, Todd Hughes

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