Por Luciana Ramos

Em 1994, o mundo foi tomado de assalto diante da grandiosidade de “O Rei Leão”: do cântico que abre o filme, dos tambores que pontuam o batismo de Simba, da angústia da perda de Mufasa à alegria de Timão e Pumba. O seu momento de criação caracterizou-se por uma guinada nas animações, que vinham desde o começo da década ganhando maior profundidade narrativa e estética (já notada na ousada tomada de grua de “A Bela e a Fera”), mas nada se comparou ao impacto cultural de uma obra que uniu referências Shakespearianas à piadas escatológicas em um invólucro que explorou a riqueza das estampas e sons africanos.

Retrospectivamente pode parecer surpreendente, mas o início do projeto foi encarado com pouco entusiasmo pela Disney: investindo todo o talento e recurso financeiro em “Pocachontas”, a empresa necessitava de um “filme B” para preencher o calendário e a tarefa ficou a cargo de Roger Allers e Rob Minkoff, que, em suas palavras, tiveram que convencer animadores mais inexperientes a se juntar ao filme. Se por um lado a falta de entusiasmo por uma história totalmente passada no reino animal dificultou a composição de uma equipe, por outro permitiu uma liberdade artística pouco comum ao estúdio, firmado em moldes sólidos do que é aceitável para “toda a família”.

Diante disso, Allers e Minkoff ousaram em experimentações e se lançaram a um real aprofundamento narrativo, transformando o que antes era uma história de disputa territorial entre babuínos e leões em um conto mítico sobre o ciclo da vida, cujo caráter apelativo transcende gênero, idade ou raça. A jornada de amadurecimento de um jovem leãozinho que, diante da tragédia, opta em fugir mas é relembrado das suas responsabilidades foi moldado a partir de “Hamlet”, aparente na traição de Scar – que chega a citar diretamente a peça ao dizer “Vida Longa ao Rei” – e no tormento de Simba, assombrado pelo passado, ainda que se recuse a encará-lo. Mais importante, no entanto, é a noção intrínseca entre reinado e habitat, sendo o ambiente da savana um reflexo do caráter do seu Rei e que, por isso, entra em declínio absoluto com a ascensão de Scar.

A ousadia de incorporar elementos cruéis, como a citada morte de Mufasa ao roteiro de um filme infantil contrapõe-se à comicidade espalhada por toda a trama, mas potencializada com a aparição de Timão e Pumba. O jogo entre opostos, observado na união de passagens díspares como a cena do cemitério dos elefantes e a sequência musical “O Que Eu Quero Mais é Ser Rei” demonstra extremo controle de ritmo, um dos principais trunfos do longa, já que o torna ao mesmo tempo palatável e pungente.

Esteticamente, há a incorporação das cores de maneira acentuada, seguindo o molde esquemático que pontua os tons mais fechados para caracterização do mal. Nisso, destaca-se o uso de estampas africanas nos rios, um uso criativo das possibilidades da animação. A grandiosidade de enquadramentos amplos e detalhados soma-se a movimentações de câmera ousadas, como as subjetivas que demonstram o espanto de Simba com o fatídico ataque de gnus, um nível de requinte ainda incomum na época; hoje mais amplamente adotado nas narrativas do gênero.

Dentre os elementos marcantes de “O Rei Leão”, talvez o que mais impactante seja o som, mais notadamente o cântico de abertura, que o apresenta um mundo totalmente novo e convida a explorar a riqueza da vida animal. A inventividade de Hans Zimmer foi essencial para o resultado, desde a mistura entre tambores, flautas e kalimbas até – e talvez mais essencialmente – o convite ao músico Lebo M., que coordenou o coral que pontua toda a trilha sonora com cantos africanos. Adicionalmente, há a parceria entre Tim Rice e Elton John na construção de letras como “The Circle of Life” e “Can You Feel the Love Tonight”, duas canções que só podem ser descritas como obras-primas.

Superlativos como este, quando levianamente usados, causam estranheza ou descaso, mas neste caso, servem para pontuar a qualidade artística de um produto cinematográfico que alçou novos patamares no seu gênero, marcou gerações e, vinte e cinco anos depois, continua a tocar os corações daqueles que se propõem a assisti-lo, seja pela primeira ou enésima vez.

Ficha Técnica

Ano: 1994

Duração: 88 min

Gênero: animação, aventura, drama

Diretor: Rogers Allers, Rob Minkoff

Elenco: Matthew Broderick, Nathan Lane, James Earl Jones, Jeremy Irons, Whoopi Goldberg, Moira Kelly

Trailer:

Imagens:

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