Por Luciana Ramos

 

Em determinado momento de “Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez”, a autora Glória Perez relata o quão chocante foi o seu trajeto até o funeral da filha, observando as mesmices das vidas normais dos transeuntes no Rio de Janeiro: como a vida deles poderia continuar tão solene, inequívoca, uma vez que a sua parecia ter chegado ao fim? O abismo sentido pela perda brutal de Daniella em circunstâncias assombrosas nunca se curou (e nem poderia), mas guiou a sua luta por descobrir a verdade sobre o ocorrido e, posteriormente, advogar por justiça.

A aplicação questionável desse conceito é apenas um dos muitos temas tocados pela série documental da HBO Max, dividida em cinco episódios e dirigida por Tatiana Issa e Guto Barra. Pautada no detalhamento do inquérito policial e nas impressões daqueles que testemunharam em primeira mão o ocorrido, a obra remonta um quebra-cabeça complexo que vai muito além do true crime, gênero muito em voga nos últimos tempos, para tecer comentários sociais bastante aprofundados sobre o Brasil.

É chocante, por exemplo, a confusão feita por muitos fãs da novela de “Corpo e Alma”, que pareciam incapazes de dissociar Daniella de Yasmin, a personagem que interpretava, tomando a sua morte como algo íntimo. Catapultada pela cobertura sensacionalista dos canais de imprensa (outro ponto importante), a névoa novelesca criada em cima do caso ajudou na distorção dos fatos promulgada pelo casal de assassinos, que usou a janela midiática para se promover, sempre sob falso intuito de alguma revelação bombástica. Não se trata, nesse caso, de mera irresponsabilidade: é, conforme a mãe da vítima agudamente relembrou, uma agressão contínua à sua imagem e, assim, à sua dignidade.

Dessa forma, entre costuras de depoimentos extremamente detalhados da mais diversa sorte de pessoas (demonstrando grande preocupação com pesquisa e validação do material), o documentário realiza um notável esforço em resgatar o valor de Daniella enquanto pessoa. É contada a sua história até o momento, revelada um pouco mais da sua personalidade: ao invés de focar exclusivamente nos autos policiais, nota-se a intencionalidade de delinear sua persona (a real, não a promulgada em capas de revistas). Em contraste, há a exploração da brutalidade do ocorrido através de fotos dos laudos, da exposição de roupas e detalhes macabros de um crime tão doentio quanto vazio. É só através da dramaticidade dessa contraposição que se obtém uma real dimensão do caso.

Ao centro, encontra-se a figura de Glória, sofrida, forte, reflexiva, observadora costumaz da sociedade e obstinada por não deixar a relevância de sua filha esvaecer em meio ao caos. Seus relatos são incrivelmente detalhados e tocantes, responsáveis por catapultar a série a um outro patamar.

Desde o seu lançamento, “Pacto Brutal” suscitou protestos do assassino (solto e promovendo atualmente a imagem de “cidadão de bem”), que acusou a dupla de diretores de não ter ouvido a sua versão. Acontece que, conforme detalhado em um dos episódios, o documentário nasceu exatamente da proposta de Perez em contrapor tantas versões, promovidas em programas de jornalismo “pinga sangue” nos últimos trinta anos, com a descrição da verdade, respaldada por provas e multiplicidade de vozes. Pode-se dizer que já coube ao assassino a oportunidade de falar o que quis, e agora é a oportunidade do outro lado. Pode-se lembrar também que se trata de obra documental, e não jornalística, não havendo o ônus de se esgotarem as versões. A qualquer documentário cabe um recorte narrativo de escolha dos seus autores e, nesse caso, a opção foi claramente acertada.

Ficha Técnica

Ano: 2022

Número de Episódios: 05

Nacionalidade: Brasil

Gênero: crime, documentário, true crime

Criadores: Guto Barra, Tatiana Issa

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