Por Marina Lordelo
O cavalo-marinho é um peixe que subverte as leis da natureza: o macho é responsável pela maior parte da gestação dos seus filhotes. E assim, sobre a égide de assumir sozinho os cuidados de sua filha adolescente, Will (Ben Foster) vive com Tom (Thomasin McKenzie) pelas florestas de um parque urbano em Portland, Estados Unidos. E nesse longa-metragem intimista “Sem Rastros” (Leave no Trace, 2018) de Debra Granik, a realizadora escolhe junto com Anne Rosellini adaptar a obra “My Abandonment” de Peter Rock para o cinema.
O roteiro do filme assume uma lógica de falar pouco, em diversos sentidos – pouco se explica sobre a vida pregressa dos protagonistas e há uma economia (no bom sentido) dos diálogos existentes. A dinâmica dos atores e o que precisa ser dito está, então, pelas atuações delicadas e nos corpos que se movem pelas trilhas frias. E é na ação que o espectador experimenta um pouco dessa escolha de vida incomum de pai e filha – que coletam a própria água, os cogumelos e frutas, dormem em uma cabana improvisada e tem poucos pertences, como diria um personagem em “Arábia” (2017) de João Dumans e Affonso Uchoa, “para viver basta o necessário que caiba em uma mochila”.
Com uma ambientação sonora que dialoga com os silêncios da mata, uma luz naturalista e uma câmera que deixa a mise-en-scène agir, o fotógrafo Michael McDonough opta por utilizar uma razão de aspecto menos ousada (1.85:1) e uma câmera de cinema mais compacta (Arri Alexa Mini), que conversam com a linguagem fílmica de manter seus personagens integrados a floresta.
É importante não deixar rastros, porque pai e filha vivem em uma propriedade do governo de forma ilegal, mas Tom e Will são levados a um novo caminho urbano quando são descobertos pelos funcionários do parque. E se Tom se encanta por um colar perdido em uma das trilhas da floresta, ela também cede aos pequenos luxos de ter uma casa – não passar frio, ter gás para cozinhar, água disponível, roupas limpas e o mais importante, socialização com os vizinhos. Os recursos básicos parecem encantadores para quem está acostumado a privar-se deles. Uma privação aparentemente deliberada, devido aos monstros internos que atormentam Will – “você se arruma, aparece e as pessoas pensarão algo sobre você”, diz a Tom quando precisam comparecer a uma reunião religiosa.
As abelhas podem ser mortais e “eu trabalhei muito duro para ter a confiança delas” – essa frase aparentemente inofensiva reverbera na cabeça de Tom, que precisa assumir a condução de sua vida nômade ainda que compreenda as necessidades de seu pai. Habilidosa em se relacionar, mesmo que insegura desde o seu tom de voz, a adolescente sabe viver só, ela tem sido treinada para isso. E entre estar sozinha com seu pai ou estar sozinha com seus vizinhos, é na escolha de assumir ou não os blues que não lhe pertencem que Tom precisa nascer do cavalo-marinho que lhe abriga, lhe protege, lhe gera. Porém é impossível não deixar rastros.
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 109 min
Gênero: Drama
Direção: Debra Granik
Elenco: Thomasin McKenzie, Ben Foster, Jeffrey Rifflard
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