Por Luciana Ramos

A adaptação de narrativas históricas foi um dos primeiros campos a florescerem no cinema, ainda no seu estágio embrionário. A iniciativa de usar o cinema e, posteriormente, a televisão para recontar fatos históricos, no entanto, suscita um inevitável embate entre veracidade e liberdades artísticas.

A série “The Great”, que destrincha a jornada da alemã que se tornaria conhecida como “Catarina, a Grande” (doravante chamada Catherine como na série) na Rússia oferece um novo olhar sobre a discussão ao propositalmente descomprometer-se em recriar fielmente componentes factuais – como a linguagem ou a ordem específica dos acontecimentos – para, através da sátira, tecer um elaborado e inteligente comentário sobre esferas de poder, abusos de autoridades, regalias e alienação das camadas mais pobres em uma estrutura corrupta e incompetente, algo que pode facilmente ser transmutado para outras formas de governo além da monarquia.

Se o roteiro de Tony McNamara (que escreveu o filme “A Favorita”) por vezes choca pela vulgaridade escancarada – essa muito bem documentada em uma série de livros históricos mas, aqui, levado a um patamar moralmente inferior – ele obtém o equilíbrio do texto pela sutileza com que trabalha os elementos essenciais da Corte: a sedução de uma vida sem limites, as disputas por benefícios pessoais e a periculosidade inerente a um líder alienado como Peter (Nicholas Hoult).

Por ter crescido em um palácio luxuoso com a promessa de governar, ele jamais se conectou com o povo que deveria representar e, portanto, possui como ideia de Governo um aglomerado de brincadeiras estúpidas, humilhações de servos, bebedeira, sexo e uma curiosa atração pela quebra de copos.

A obrigatoriedade do riso toda vez que ele conta uma “piada” revela o seu caráter sádico e, portanto, perigoso já que não se inibe de matar quem o deixa descontente. Ao fazê-lo, ele expõe involuntariamente o vazio moral típico de alguém nutrido de privilégios, mas não de humanidade. Dessa forma, os incessantes “hurras” gritados no palácio encapsulam um misto pungente de frustração e medo, algo que Catherine (Elle Fanning) capta assim que chega à Rússia.

A jovem é absolutamente inocente ao início e se vê em desespero quando se dá conta do que a vida lhe reservou: um marido bonachão e cruel cercado de pessoas fúteis e e sem interesse nas ideias iluministas. As suas tentativas de trazer a luz da ciência a Peter falham “de cara” e, sem saída, decide então se matar – ainda que de maneira vacilante – até que Marial (a ótima Phoebe Fox), uma ex-nobre rebaixada a serva, propõe algo melhor: a morte do Imperador, o que lhe concederia o trono. Instala-se então um divertido e ardiloso jogo de poder onde Catherine rapidamente aprende algumas habilidades necessárias, embora pouco louváveis, como a capacidade de manipulação e um certo quê de brutalidade.

Seu intelecto é tão superior que chega a ser reconhecido pelo próprio Peter, o que teoricamente tornaria sua jornada mais fácil não fossem as outras forças operantes na engrenagem política: a Igreja, que atua em causa da própria usura e abomina ideias reformistas por imporem um risco à servilidade religiosa; a ala militar, presa em uma guerra estúpida que nem o próprio governante consegue explicar; os parentes de Peter, que poderiam clamar o trono no caso da sua morte, como a tia Elizabeth (Belinda Bromilow), que se faz de maluca mas é extremamente observadora e astuta, e o pequeno Ivan (Charlie Price), o meio-irmão bastardo que oscila entre a carência infantil e a sede por sangue.

A narrativa evolui através da exploração de todas estas camadas de interesses, que se intercalam em uma inevitável escalada de tensão. Porém, ao contrário de outros dramas históricos, como a recente minissérie “Catharina, a Grande” (HBO), “The Great” não se engessa nos costumes e detalhes, privilegiando o uso de modernismos como ferramentas de conexão emocional com o espectador e, doravante, do aprofundamento das discussões.

A fluidez das interações dos personagens decorreu da escolha de McNamara em compor um texto principal e fazer os atores improvisarem até escalarem ao ponto máximo do debate de ideias…ou insultos. O frutífero processo resultou em interações absurdas e questionáveis entre os personagens, além de anomalias como as ridículas sequências de dança, todos elementos que tornam a série uma experiência hilária e deliciosa.

Obviamente, o sucesso de uma obra pesadamente pautada no improviso decorre essencialmente da capacidade dos atores de entenderem o seu propósito e elevarem o material. Felizmente, o corpo principal do elenco é excelente – com uma pequena exceção, Sebastian de Souza, que destoa, mas não incomoda.

Tanto Elle Fanning quanto Nicholas Hoult são atores formados pelo ofício do trabalho, que exercem desde criança e, em “The Great”, ambos demonstram extrema habilidade em conduzirem as cenas a um patamar cômico elevado. As pontuações faciais de Fanning, que transitam entre o que sua personagem deseja passar e o que ela realmente está sentindo, encontram na deliciosa naturalidade com que Hoult é capaz de falar absurdos uma combinação perfeita, criando uma dinâmica extremamente prazerosa.

A excelência estende-se aos aspectos técnicos da produção, desde a fotografia à direção de arte, que exploram a pomposidade da Corte versus a solidão da protagonista. Neste sentido, o trabalho do figurino é extremamente interessante. Nos episódios iniciais, quando se vê totalmente desconectada com o novo lar, os trajes verdes em tons claros e apagados de Catherine são muito destoantes dos demais, que oscilam entre cores terrosas, preto ou vermelho saturado. Conforme vai se adequando, a personagem é cada vez mais enquadrada com paredes ao fundo de cores semelhantes às suas roupas que, embora diferentes em tons, confirmam visualmente seu gradual conforto.

A paleta de cores se torna ainda mais curiosa com a aparição de Leo (Sebastian De Souza), sempre apresentado em cores iguais ou complementares, mostrando assim o seu total alinhamento a ela. Ademais, quando Catherine e Peter experimentam um momento mais frutífero da relação, os vestidos dela mudam para tons em azul e ganham golas e mangas de pele marrons, que combinam com as roupas do marido. Essas pequenas simbologias persistem até o episódio final, quando a protagonista abandona de vez os vestidos pastéis que a acompanharam até então e realiza uma brusca transição para o rosa em saturação máxima, reafirmando imageticamente a sua transformação.

Visualmente primoroso, extremamente divertido, envolvente, incisivo e sarcástico, “The Great” desfruta de uma maior liberdade histórica (ressaltada em todas as aberturas) para aprofundar seu caráter crítico a estruturas de poder corruptas baseadas em figuras autoritárias e seus sedentos acompanhantes, um tema tão em voga hoje em dia quanto no século XVIII, quando a mulher que viria a ser cunhada de “Catarina, a Grande” as desafiou. Hurrah!

Ficha Técnica

Ano: 2020 – em andamento

Número de Episódios: 10 (por temporada)

Nacionalidade: Reino Unido, Austrália

Gênero: comédia, sátira, drama, biografia

Criador: Tony McNamara

Elenco: Elle Fanning, Nicholas Hoult, Sebastian De Souza, Phoebe Fox, Douglas Hodge, Belinda Bromilow, Adam Godley, Sacha Dhawan

Avaliação do Filme

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