Por Luciana Ramos

O conceito do casamento, que abarca a união de duas pessoas em comunhão, impõe a criação de um ambiente em que a verdade transite de forma absoluta, de modo que um seja testemunha da vida do outro. É por isso que a quebra deste elo, extremamente comum nas sociedades modernas, impõe questionamentos que a produção audiovisual vem se debruçando há décadas através da seguinte pergunta: o quão bem você conhece seu parceiro(a)?

É exatamente este o fio conduto da minissérie “The Undoing”, da HBO. Grace Fraser (Nicole Kidman) é apresentada no seu lugar de conforto, seu escritório, onde compõe detalhadas (e, por vezes, brutais) avaliações de seus pacientes. Enquanto psicóloga, foi treinada para analisar o comportamento alheio e estabelecer conexões racionais entre ações e a teia social que formou tal indivíduo.

Por isso, fica extremamente desnorteada após descobrir que Elena Alves (Matilda de Angelis) foi brutalmente assassinada, espancada até ter seu rosto deformado. Ela a conhecia brevemente através do grupo de mães da escola e, embora sentisse um misto de pena com intimidação, nunca esperaria o ocorrido…tampouco o fato do seu marido Jonathan (Hugh Grant) ser apontado como suspeito.

As investigações iniciais revelam um relacionamento amoroso entre os dois e a culpabilidade, por sua vez, é acentuada pela decisão dele de fugir após o ocorrido. Toda a violência envolvida no caso contrasta absurdamente com o perfil amável e brincalhão de Jonathan, sem contar a escolha de uma profissão altruísta – oncologista pediátrico – para se dedicar. Para completar, o investigador Joe Mendoza (Edgar Ramirez) aborda Grace de maneira incisiva reiteradas vezes, implicando a sua possível cumplicidade.

Tantas imposições ao mesmo tempo deixam a protagonista completamente desnorteada, visto que ela parece perder suas referências sobre o que é ou não verdade. Lidando com pistas que a colocam nos arredores da cena do crime, a psicóloga passa a reavaliar todos os elementos da sua vida na tentativa de conquistar novamente o controle. Para isso, conta com o apoio e o dinheiro do pai, Franklin Reinhardt (Donald Sutherland), que financia a defesa de Jonathan, embora abertamente o deteste.  

“The Undoing” caminha em meio a este emaranhado de pistas, suspeitos e mistério, abrindo diversas frentes possíveis para a solução do caso. Infelizmente, nem sempre se aprofunda nos elementos apresentados, como a relação entre Elena e Fernando (Ismael Cruz Cordova) ou o fato do filho dela (Edan Alexander) ter descoberto o seu corpo. Cada item é adicionado como uma possível subtrama, mas tratado na superficialidade, usadas apenas para manter acesa a aura do mistério. No trajeto, perdem-se oportunidades para aprofundamento da discrepância social apresentada – e muito bem fundamentada no primeiro episódio – ou mesmo de alguns personagens secundários.

Um tratamento melhor é oferecido à questão da cobertura midiática de um caso, por si só, espetaculoso. Trabalha-se bem o uso dos múltiplos canais de jornalismo/entretenimento como ferramentas que podem servir à acusação ou defesa, a depender do jogador, e o sofrimento infligido às pessoas indiretamente envolvidas no caso, como o filho do casal, Henry (Noah Jupe).

A minissérie muito se beneficia da direção de Susanne Bier, consagrada diretora dinamarquesa que explora cada canto de Nova York, tornando-o um personagem adicional na trama. Ademais, ela propositalmente desfoca os enquadramentos ao redor de Grace, acentuando visualmente a névoa que se impõe sobre sua cabeça. Para isso, aposta em closes que exigem um árduo trabalho emocional de Nicole Kidman, que sabe explorar a câmera.

Contudo, a grande estrela desta obra de ficção é Hugh Grant, que desfruta do seu amadurecimento em escolhas de papeis mais interessantes, como em “A Very English Scandal”. Absolutamente brilhante como Jonathan, ele sabe percorrer espectros emocionais muito distintos em segundos – da gentileza aos rompantes de violência, da fragilidade ao duro sarcasmo – impondo, assim, uma aura de instabilidade ao seu personagem que deixa o espectador em suspensão o tempo todo.

Destacam-se também os ótimos trabalhos de Noma Dumezweni como a advogada feroz muito mais interessada em dobrar a verdade a seu favor do que descobri-la, e Donald Sutherland, dono de uma presença em tela como poucos. Este, embora sempre ótimo, não possui muito com o que trabalhar, permanecendo à sombra dos acontecimentos.

Ao final, “The Undoing” fortalece seu argumento principal, estabelecendo pungentes comentários sobre seu tema a partir da percepção de Grace, mas perde um pouco do brilho com a insistência em adicionar uma reviravolta final, que não oferece um componente narrativo novo e nem uma recompensa emocional significativa. Esta escolha, no entanto, refere-se a uma prática literária extremamente comum hoje em dia (os autores parecem querer multiplicar o clímax de alguma forma em um último lampejo de surpresa) e reflete-se na obra televisiva pela também usual falha na adaptação do material; ou melhor, na insistência em condensar todas as páginas do livro-base ao invés de focar na essência do que foi escrito.

Ainda assim, a minissérie da HBO é interessante o suficiente para manter a expectativa do público, tanto pela narrativa quanto pelo talento do elenco, mas limita-se em alguns pontos, permanecendo aquém de outras obras que abordaram temas similares, como a própria colaboração anterior entre Kidman e David E. Kelley, “Big Little Lies” ou a excelente e pouco vista “Em Defesa de Jacob”, da Apple+.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Número de Episódios: 6

Nacionalidade: EUA

Gênero: crime, drama, mistério

Criador: David E. Kelley

Elenco: Nicole Kidman, Hugh Grant, Noah Jupe, Donald Sutherland, Edgar Ramirez, Lily Rabe, Matilda de Angelis, Edan Alexander, Ismael Cruz Cordova, Noma Dumezweni

Avaliação do Filme

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