Por Luciana Ramos

O cinema tradicional francês pode mostrar-se valioso pela profundidade com que trata os temas escolhidos. Ao dedicar-se a contextualizar as vidas de seus personagens, exteriorizando seus temores, medos e anseios, torna-se poético, tocante e eficiente. Um dos moldes narrativos mais comuns a este tipo de abordagem é a comédia, usada geralmente para suavizar assuntos sérios através da exploração do que há de patético nos seres humanos.

Este é o caso de “Um Banho de Vida”, uma agradável surpresa do ator e diretor Gilles Lellouche. Unindo um grupo de consolidados perdedores em um esporte que exige a graça e leveza que não possuem, o filme trata de carências, do sufocamento pela burocratização da vida e, em especial, da depressão, um dos grandes males do século. É assim, sem perspectiva ou qualquer pingo de prazer que se encontra Bertrand (Mathieu Amalric). Desempregado há dois anos, ele transparece o desespero da sensação de inutilidade no olhar – sentimento constantemente reforçado pelo tratamento concedido pelos seus filhos.

Um dia, ao ver um anúncio no parque aquático da cidade, decide se inscrever na seleção de nado sincronizado masculino, embora não tenha as qualificações necessárias. Os seus companheiros de equipe são igualmente desprovidos de talento, lutando para desempenhar tarefas básicas no treino. Alguns estão fora de forma, outros são mais velhos do que o esperado para uma equipe oficial. Com objetivos distintos, os homens unem-se pelo esporte, encarando-o como possibilidade de atenuação das tensões e de fortalecimento de amizades.

Como fica claro logo ao início, os momentos antes e depois dos treinos funcionam como uma terapia coletiva, onde o julgamento é substituído pelo apoio irrestrito. Ao passo que Bertrand sente-se incapacitado pela depressão, Laurent (Guillaume Canet), que sofre do mesmo, usa falas espumadas de raiva para liberar um pouco da incrível angústia que sente por conta da instabilidade do seu seio familiar.

O ar irresponsável de Marcus (Benoît Poelvoorde), por sua vez, esconde a decepção que sente por estar à beira da falência. O sonhador Simon (Jean-Hughes Anglade), também em situação financeira precária, não consegue encontrar o equilíbrio entre continuar seguindo o seu sonho de ser um astro de rock e obter o respeito da filha adolescente, que o vê como um fracassado. Já o engraçado Thierry (Phillippe Katherine), que trabalha no parque, vê com orgulho a sua atividade, mas é menosprezado pelos outros frequentadores do local, que não enxergam a sua humanidade por trás das suas limitações cognitivas. Como pano de fundo, completam a equipe Basile (Alban Ivanov) e Avanish (Balasingham Thamilchelvan), que nunca recebem o delineamento minimamente necessário para justificar suas participações na trama.

Esta opção revela-se bastante incômoda por excluir o único personagem negro (e imigrante) de ter uma história bem fundamentada, que se revele tão expressiva quanto a dos outros personagens. Relegado ao pano de fundo cômico, Avanish, com seu sotaque indefectível, é certamente engraçado, mas denuncia uma falta de cuidado no roteiro que é impossível de ser ignorada.

Com exceção dos dois casos citados, a narrativa se preocupa em intercalar cenas cômicas passadas nas piscinas, explorando ao máximo a inaptidão dos personagens, a passagens rotineiras que oferecem vislumbres mais aprofundados sobre suas carências emocionais. Inclui-se nisso a abordagem delicada da vida de Delphine (Virginie Efira), a treinadora, que vê neste conjunto de alunos meio ridículos um motivo para ficar sóbria.

A alegria trazida pelo esporte, reforçada pelo modo delirante com que eles se enxergam os levam a se inscreverem na competição mundial de nado sincronizado, o que provoca uma mudança substancial do roteiro que, embora continue a focar na jornada emocional destes homens, passa a se focar muito mais no apelo cômico da montagem de uma apresentação. Este momento é marcado pela substituição provisória de Delphine por Amanda (Leila Bekhti), que comanda o time como uma verdadeira tirana: o hilário menosprezo que não hesita em transparecer funciona muito por pontuar o desempenho patético do grupo.

Neste sentido, os momentos de treino intenso que antecedem a competição sãos os melhores do filme, uma sucessão de momentos absolutamente hilários, potencializados pela entrega do excelente elenco, sempre afinado. Destacam-se, no entanto, os dois atores com maior material dramático: Amalric deposita intensidade em seu Bertrand, oscilando exasperação e entusiasmo no seu olhar; já Canet, antipático ao começo pelos modos rudes, consegue oferecer humanidade ao seu personagem quando revela o sofrimento pouco contido. Laurent, entre todos os personagens, é aquele que passa pela maior transformação interior e o ator consegue realizar esta transição de forma sutil e competente.

O filme envolve a jornada dos seus adoráveis “fracassados” em uma alegoria geométrica que simboliza o potencial de completude, da superação e, em especial, da realização de sonhos com a união de persistência e um sistema de apoio emocional. Mesclando humor e drama, “Um Banho de Vida” é um filme edificante e extremamente divertido, capaz de arrancar muitas risadas e, ainda por cima, deixar a alma leve.

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 122 min

Gênero: comédia

Direção: Gilles Lellouche

Elenco: Mathieu Amalric, Guillaume Canet, Benoît Poelvoorde, Jean-Hughes Anglade, Virginie Efira, Leila Bekhti, Alban Ivanov, Balasingham Tamilchelvan

Trailer:

Imagens:

Veja Também:

Justiça em Família

Por Luciana Ramos Concebido como um veículo para o ator Jason Momoa, “Justiça em Família” marca a quinta colaboração entre...

LEIA MAIS

Garçonete

Por Luciana Ramos   Jenna Hunterson (Keri Russell) é jovem, bonita, criativa e possui um senso culinário aguçado, que a...

LEIA MAIS

O Tigre Branco

Por Felipe Galeno   Um empresário indiano (Adarsh Gourav), sob vestes elegantes e diante da iluminação quase neon de seu...

LEIA MAIS